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Jardins da Escola Britânica, Humaitá, zona Sul do Rio. É neste endereço que acontece a tradicional feira Chega Junto, destinada a imigrantes e refugiados que buscam uma nova fonte de renda e reconexão social, onde cheiros, aromas e sabores se misturam. A simpatia e os sorrisos nos rostos, que carregam diversas histórias de vida, mostram a tentativa de cada participante do projeto em reconstruir suas vidas longe de seus países, todos em plena comunhão. Tal comunhão é tão grande que as rivalidades históricas são deixadas de lado. A Índia e o Paquistão, que travam conflitos armados em uma disputa territorial pela região da Caxemira desde 1947 e têm as religiões (o hinduísmo e o islamismo, respectivamente) como agravantes de suas tensões, estão lado a lado, por exemplo.
Passando de barraquinha em barraquinha, é impossível não notar a do venezuelano José Joaquim, localizada entre o portão de entrada da feira e a Nigéria. José veio para o Brasil há dois anos. A situação no seu país era insustentável. “Eu passei por extorsão, sob ameaça de morte por parte de um grupo criminoso no meu país. Durei pagando extorsão (por) quase 9 anos, até que em 2015 decidimos ir embora para morarmos neste maravilhoso país”, comentou, enquanto preparava, junto com a mulher, um prato com quibe e falafel – um bolinho frito ou assado de origem árabe, feito de grão de bico ou fava moídos, no qual podem ser adicionados ainda alho, cebolinha, salsa, coentro e cominho, entre outros condimentos – para um dos frequentadores da feira.
Toda a renda da família do venezuelano Jose Joaquim vem dos quitutes vendidos na feira / Foto: Guilherme Moreno
A Chega Junto foi iniciada em 2015 a partir de uma parceria da Cáritas do Rio de Janeiro (organização criada pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB) e a Junta Local, um coletivo de pequenos agricultores e produtores artesanais. Para eles, a ideia é produzir uma comida sem “gosto de laboratório”, ou seja, a origem deve ser natural. Além disso, o produtor e o consumidor fazem parte de um processo mútuo, no qual todos conhecem os processos da produção do alimento, desde a colheita até a refeição. Após um ano de “estágio” nas feiras organizadas pela Junta, que abriu espaço gratuito para refugiados com talentos culinários, estes participantes ganharam uma feira exclusiva, organizada sempre no último sábado de cada mês. Atualmente, a feira “Chega Junto” reúne 18 famílias de refugiados e migrantes vindos de Angola, Argentina, Colômbia, Haiti, Índia, Japão, Nigéria, Paquistão, Peru, República Democrática do Congo, Síria, Togo, Uruguai e Venezuela. A cada edição, novos países são convidados a participar. Além das barracas com comida, os eventos sempre contam com música ao vivo e até mesmo pequenas oficinas.
Para José, conhecer a feira foi fundamental e coincidiu muito bem com sua vinda ao Brasil. “Tivemos a oportunidade de participar na feira através da Organização Não Governamental (ONG) Pares Cáritas RJ, onde pude conhecer o projeto, que é uma parceria conjunta com a Junta Local. Nossa primeira participação foi em abril do ano 2016. Já hoje em dia somos produtores da Junta Local e integrantes do projeto Chega Junto.” Atualmente, ele se mantém financeiramente somente com o projeto, pelo qual tem um carinho especial: “Mantenho minha família somente trabalhando com minha esposa através da oferta de nossos produtos, bem seja nas feiras Chega Junto, Sacola Virtual da Junta Local ou recebendo encomendas”.
A situação do país de Joaquim é crítica. Além da acirrada crise política, há anos a Venezuela enfrenta problemas econômicos e sociais, agravados pela alta dependência da importação de bens e pela queda do preço do petróleo, maior fonte de suas divisas. A crise hospitalar e de saúde também afeta o país desde 2013. A falta de medicamentos, de produtos básicos de saúde e a busca por uma melhor qualidade de vida fizeram milhares de venezuelanos atravessarem fronteiras em busca de suprimentos. O número de hermanos que pediram refúgio no Brasil aumentou 1.036% entre 2013 e 2015, tendo sido Roraima a principal porta de entrada no território nacional, segundo dados do Conselho Nacional para Refugiados (Conare), órgão ligado ao Ministério da Justiça.
Mas na Feira, os sorrisos estampados desde o início do dia ainda eram presenciados no final da tarde. As histórias do passado e presente continuavam a se cruzar pelos corredores da feira. No entanto, a tarde veio, começou a escurecer e os trabalhadores iniciaram o encerramento de suas atividades após mais um sábado intenso. A volta ao mundo pelas barracas ia se encerrando. José fazia o mesmo com sua esposa, mas prometeu que sempre retorna todo fim de mês.
• Imigração em foco na universidade
Em outubro, a Feira Chega Junto levou toda sua diversidade cultural para a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), no campus da Praia Vermelha, na Urca (zona Sul). Durante uma semana, duas barracas com comidas típicas formaram filas no meio do espaço da faculdade. A cada dia, refeições de dois novos países. Na manhã do dia 20, sexta-feira, duas mulheres de poucas palavras, mas semblantes simpáticos, vendiam arepas (espécie de pão) e empanadas feitas com massa de milho e papas rellenas (batatas recheadas), comidas típicas da Colômbia. Enquanto os estudantes faziam fila para comer suas arepas recheadas com carne, frango, queijo ou camarão, dois homens chegaram e se organizaram ao lado das colombianas. Logo que montaram sua barraca, a do Paquistão, já foram abordados por clientes.
No campus da UFRJ, imigrantes preparam arepa,
iguaria típica da Colômbia / Foto: Gabriela Morgado
A feira durou 5 dias e reuniu barracas de várias partes do mundo / Foto: Gabriela Morgado
A Feira acompanhou a programação da 9ª edição do Fórum de Migrações/Migratic 2017, que, há cinco anos, acontece paralelamente ao Simpósio de Pesquisas sobre Migrações, realizados no campus Praia Vermelha da UFRJ. Do dia 16 a 20 de outubro, enquanto pesquisadores apresentavam suas teses dentro de um auditório, quitutes eram vendidos por participantes da Chega Junto, do lado de fora. Apesar de ser uma iniciativa de integração, o evento deixou clara uma das maiores dificuldades dos imigrantes que vêm para o Brasil: a língua portuguesa. Os paquistaneses da Chega Junto, por exemplo, não falavam português, apenas urdu e inglês, línguas oficiais de seu país. O idioma é uma barreira até mesmo para os imigrantes com rica formação acadêmica.
O idealizador e organizador do Fórum, Mohammed El Hajji, é marroquino e veio morar e estudar no Brasil em 1991. Em seu país, foi jornalista durante 12 anos, mas acabou se voltando para o meio acadêmico no Brasil. El Hajji nunca teve problemas legais com a Justiça brasileira e nunca precisou de ajuda de órgãos ou entidades de apoio a imigrantes. Não é, como ele mesmo diz, um exemplo de imigração, já que não faz parte de um fluxo migratório do Marrocos para o Brasil. Fala dos brasileiros na primeira pessoa do plural, sempre se incluindo: “nós”. Mesmo assim, ele não falava português. Logo que chegou ao país, dirigiu-se ao antigo Le Méridien Copacabana, hoje Hotel Hilton, pois sabia que os funcionários falavam francês. Alugou um apartamento no bairro e fez um curso de português para estrangeiros na Aliança Francesa, empresa de idiomas que hoje apoia o Fórum e o Simpósio. Outros imigrantes, no entanto, não têm tantos recursos, nem tanta sorte.
Entre o Fórum e o Simpósio de quarta-feira, dia 20, atrasado para o almoço e com sua pasta e óculos escuros na mão, El Hajji, que é professor e pesquisador da Escola de Comunicação (ECO) da UFRJ, onde fez mestrado e doutorado, foi categórico: “Não somos xenófobos, somos racistas”. O ex-jornalista afirmou que o preconceito que os imigrantes sofrem no país está mais relacionado com os traços físicos do que com o lugar de onde vêm. “O Brasil é o país que teve o maior contingente de gente escravizada na história da humanidade e que teve o mais longo regime escravocrata. Não é possível deixarmos de ser racistas de uma hora para a outra. Dessa forma, o brasileiro gosta do estrangeiro em geral, mas discrimina o haitiano, os africanos, gente de pele negra em geral, e os latinos com fenótipo indígena.” São esses imigrantes, segundo o professor, que mais têm problemas para “abrir uma conta no banco, receber ajudas institucionais às quais têm direito e matricular o filho na escola, por exemplo”. Sua fala pode ser explicitada na relação dos brasileiros com diferentes culturas: “Cultuamos os europeus e tratamos asiáticos, africanos e mesmo outros latino-americanos, com todas as suas diferenças regionais, como exóticos, quando não inferiores”.
O professor da ECO tem pele escura, que no Brasil é chamado de “moreno”. Fala português carregado de sotaque e já viajou por muitos lugares, estudando e trabalhando. Possui pesquisas na área de imigração, como o estudo da relação ente a mídia étnica comunitária nacional e a criação de identidades transnacionais de imigrantes no estado do Rio de Janeiro. Acredita que a falta de informação do brasileiro sobre os imigrantes é uma das principais causas para que o preconceito continue. Para ele, os brasileiros se informam principalmente pela grande mídia, que é sensacionalista e dominada por uma lógica empresarial. “O Brasil é uma ilha com uma mídia autocentrada, de qualidade técnica altíssima, mas com conteúdo conservador extremamente reacionário. Não temos programas culturais ou de preocupação social. Tudo é reduzido ao que vai vender ou não”, completa. Para ele, assim como o brasileiro tem sua imagem estereotipada internacionalmente, os imigrantes também são retratados por nós de maneira muito generalizada e, muitas vezes, fora de contexto. “Trabalho com a questão migratória e vejo o alarmismo na mídia brasileira sobre as migrações na Europa. Quando você vê a TV do país, acha que os europeus estão vivendo uma guerra civil, quando a mídia fala do imigrante que vem para o Brasil, ou o trata como perigo ou fala com paternalismo, quando na verdade são outras histórias. Aí é onde entra a mídia alternativa, que, nesse caso, se configura através das redes sociais”, comentou El Hajji.
Exemplos de alternativas aos clichês imigratórios retratados pela grande mídia, segundo ele, são, por exemplo, o grupo de debate do Facebook “Brasil País de Imigração”, vinculado ao Fórum; as páginas da rede social “Eu, Imigrante”, focada no debate contra o racismo, “Raízes da Imigração” e “Globalização, Imigração e Intolerância”; o blog “MigraMundo”, fundado pelo jornalista Rodrigo Borges Delfim, que participou do Fórum de 2017. O pesquisador da UFRJ defende que essas iniciativas batem de frente com a visão hegemônica criada pela grande mídia sobre a questão, o que abre um debate mais amplo. “A discussão se torna muito importante no período em que estamos vivendo, com ataques terroristas pelo mundo acontecendo com frequência e movimentos ultranacionalistas ganhando espaço. Ao mesmo tempo que sentem pelas vítimas, os residentes locais, não só do Brasil, mas de outros destinos de migrantes, ficam com medo das pessoas que chegam aos seus países, que poderiam representar ameaças ao bem-estar e à cultura do povo nativo.” El Hajji diz ainda que o Fórum pretende ir contra esse tipo de pensamento, ao unir pesquisadores com línguas diferentes em suas “roupas sociais”, estudantes brasileiros e estrangeiros, “com suas mochilas e tênis All-Star”, além de ouvintes de fora da área acadêmica.
Uma das organizadoras do evento é a colombiana Catalina Revollo Pardo, que mora no Brasil. Ela Faz parte do Programa de Psicossociologia de Comunidades e Ecologia Social (EICOS), também da UFRJ, no qual conheceu El Hajji, também integrante do Programa. De vestido florido e trança no cabelo contrastando com seu piercing abaixo dos lábios, Catalina contou sorrindo sobre a alegria que sentiu ao participar do seu primeiro Fórum. “O espaço me proporcionou encontrar com muitos migrantes que eu nunca tinha conhecido e ter uma troca de experiências, dos processos de entendimento do que a gente vivenciava. Para mim, como migrante, foi muito emocionante.”
A colombiana Catalina Pardo fala sobre a importância do Fórum de
Migrações/Migratic para a troca de experiências com outros imigrantes
• Saúde do refugiado
Uma das conferencistas do Simpósio foi Julianna Coutinho, do Instituto de Medicina Social (IMS) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). Julianna faz mestrado em Saúde Coletiva, na área de Ciências Humanas e Saúde, e levantou um debate muito importante: o acesso de refugiados e solicitantes de refúgio aos serviços de saúde do Rio de Janeiro. Ela lembrou que os solicitantes possuem documentação provisória, enquanto esperam a decisão da Justiça em aprovar ou indeferir o processo de pedido de refúgio. Mesmo assim, possuem os mesmos direitos dos que já detêm o status de refugiados à saúde. Em março de 2017, o Rio abrigava 4.288 refugiados e 2.899 solicitantes de refúgio, em sua maioria angolanos. Os dados do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) podem ser encontrados no livro “Recomeço”, lançado em outubro pela Secretaria Municipal de Saúde do Rio (SMS) sobre as experiências dos profissionais do Sistema Único de Saúde (SUS) da cidade com refugiados e solicitantes. A obra está disponível no site da Secretaria, gratuitamente: elosdasaude.com.br.
Apesar da lei brasileira garantir a essas pessoas o direito ao acesso à saúde, a situação real é diferente por muitos motivos: preconceito, língua, localização das unidades de saúde e variadas formas de tratamento de doenças em cada país. Por isso, em parceria com a Cáritas Brasileira, a SMS passou a promover as chamadas Feiras de Saúde. A Cáritas é uma entidade católica de promoção e atuação em causas sociais, presente no mundo inteiro. O livro “Recomeço” explica as atividades das Feiras, que ocorrem na sede da Cáritas, na Tijuca, Zona Norte da cidade. Nelas, os profissionais de saúde do município dão orientações sobre doenças, fazem atividades lúdicas com crianças e distribuem kits de saúde bucal e preservativos. Os refugiados e solicitantes também fazem o seu referenciamento para as unidades de Atenção Primária mais próximas de onde moram e recebem uma caderneta com orientações em seu idioma.
Além disso, Julianna comemorou outra iniciativa, do Governo do Rio de Janeiro, de instituir o Comitê Estadual Intersetorial de Políticas de Atenção aos Refugiados (CEIPAR) em 2010 e, através dele, criar o Plano Estadual de Atenção aos Refugiados do Rio, em 2014. As medidas, segundo ela, têm por objetivo promover os direitos e a integração social dos refugiados e solicitantes de refúgio no Rio. E se baseiam em seis diretrizes: documentação, educação, emprego e renda, moradia, saúde e ambiente sociocultural/conscientização. Julianna acredita que essas iniciativas são o início de um caminho de melhoria de vida para os refugiados e solicitantes no Estado e podem ser um incentivo para a criação de novas leis e medidas sobre o tema. Ela falou sobre elas com otimismo: “São duas iniciativas da gestão aqui no Rio que estão acontecendo: a aproximação da SMS com a Cáritas e esse Comitê que se formou no Estado para conseguir, enfim, discutir as demandas, não só na saúde, mas na assistência social em outros níveis e tentar encaminhar isso da melhor maneira possível”.